No Brasil estima-se que hoje existam mais de 150 mil empresas de pequeno e médio porte. Muitas destas foram construídas na garra e na marra do seu idealizador, fundador e principal liderança. São empreendimentos construídos a partir de grandes ideias, grandes oportunidades visualizadas no mercado ou do simples desejo de empreender, mesmo que em nichos tradicionais e de alta competitividade, ou ainda da combinação destes fatores.
Na medida em que estas empresas crescem (o que já é uma enorme conquista no nosso ambiente de negócios), começam a surgir situações, conflitos e decisões que sequer eram imaginados quando a semente ainda estava sendo plantada:
Como seguir direcionando, controlando e gerindo o negócio diante dos desafios do crescimento?
De maneira geral, me refiro a empreendimentos que, depois de nascerem, sobreviverem e crescerem com base em visão empreendedora, decisões centralizadas, ágeis e de curto prazo, planejamento reativo e gestão recheada de pessoalidade, informalidade, e sem qualquer metodologia, passam a enfrentar a pressão interna e externa pela chamada profissionalização.
Otimização de recursos, revisão constante da estrutura, captação e retenção de talentos, gestão de riscos, planejamento estratégico, política de investimentos, diversificação, indicadores, desenvolvimento e atualização tecnológica, gestão de processos…são vários os temas que começam inevitavelmente a fazer parte das demandas de uma organização em crescimento.
Na esteira destes desafios e demandas organizacionais, normalmente surgem também os conflitos existenciais e de autoafirmação daquele que foi o maior responsável para que a empresa chegasse ao momento atual: seu fundador, empreendedor e principal executivo.
Muitas vezes alheio às técnicas e temas relacionados a governança e gestão, distantes de serem assuntos de seu interesse e qualificação, alguns questionamentos começam a surgir:
- “Por que preciso de tudo isso, se chegamos até aqui sem nada disso?”
- “Por que devo dividir minhas decisões com um Conselho ou com gestores profissionais, oferecendo a eles autoridade sobre algo que construí sozinho?”
- “Vocês estão querendo dizer que eu não serei mais responsável pelas decisões na minha empresa?”
Não há como ignorar que é um momento duro e controverso para a grande maioria dos empreendedores que enxergam o seu negócio como um verdadeiro filho. Afinal, o sucesso do seu empreendedorismo e condução até aqui fez nascer de forma natural a demanda sobre técnicas, métodos e estrutura que minimizem os riscos para manutenção de sua perenidade e sustentabilidade.
Por que a Governança Corporativa para PMEs pode transformar o Brasil?
Os constantes ajustes na estruturapara atender aumento de demanda; o controle e a otimização de recursos para preservar a rentabilidade; a adequada gestão de pessoas para desenvolver e reter talentos; a importância da padronização e melhoria de processos para garantir qualidade e satisfação sobre o entregável; o acompanhamento dos movimentos do mercado e da concorrência; a estratégia de preços e de marketing institucional, são todos exemplos de situações que tornam-se parte do cotidiano da organização.
Ademais, na medida em que o empreendimento cresce, este torna-se cada vez mais exposto a diversos fatores, internos e externos, que têm relação direta com sua sobrevivência, crescimento e sustentabilidade. Em mesma direção, e seguindo este ritmo de crescimento, tais fatores avançam no caminho dos interesses de diversas outras partes envolvidas (colaboradores, parceiros, fornecedores, investidores, acionistas), as quais passam a estar atentas para o comportamento e respostas da organização, diante desta realidade.
O choque de realidade?
Trata-se, desta forma, de uma nova realidade irreversível, que não oferece mais qualquer espaço para soluções paliativas e de curto prazo; controles superficiais; decisões tomadas de acordo com a disponibilidade de tempo de um único executivo, e de acordo com a sua classificação de prioridades; decisões baseadas em pessoalidades e idiossincrasias, sem rastreabilidade e relação de causa-efeito, ou seja, não existe mais espaço para governar e gerir esta organização na base do instinto.
Em um mercado altamente burocrático, instável política e financeiramente, inseguro juridicamente e repleto de desafios de infraestrutura e qualificação de profissionais, a ausência da governança e da gestão profissional nas pequenas e médias empresas pode hoje, com tranquilidade, ser apontado como fator preponderante para a derrocada precoce de muitas empresas, assim como, pelo represamento do crescimento daquelas que, por grande competência técnica, inovação, capacidade empreendedora ou visão de mercado, alcançaram algum sucesso.
A armadilha da autossabotagem
Porém, superado o choque de realidade, não há como descansar diante do: “Ok, tudo bem. Vamos seguir este caminho e fazer o que deve ser feito”.
Não é nada incomum que a verbalização de uma consciência de profissionalização do negócio, não estejam alinhadas com as atitudes do dia a dia. O walk the talk passa a ser desafiado diariamente pelos vícios do passado, em relação a forma como o negócio é conduzido e as decisões são tomadas, o que aliás é algo totalmente esperado nestes cenários. Porém, é desafiado também pelo que podemos chamar de autossabotagem.
A autossabotagem nada mais é do que praticamente a constituição de um “governo e gestão paralelos”, no qual apesar de já existir uma estrutura profissional indicada para dirigir, controlar e conduzir a organização, seu fundador segue tomando decisões à revelia da mesma, questionando publicamente as decisões tomadas, ou ainda, descumprindo ou estimulando o descumprimento de forma consciente do que foi estabelecido por esta mesma estrutura.
Normalmente, estas situações ocorrem com a anuência e participação de pequenos grupos, setores e colaboradores, de grande ligação e confiança do fundador, habituados à sua liderança, e que não reconhecem na nova estrutura profissionalizada, legitimidade e autoridade para governar e gerir a organização.
Nestas situações, a saída está na conscientização permanente, negociação, demonstração dos resultados alcançados a partir desta nova estrutura, evidenciando ao próprio fundador a importância de todas as mudanças promovidas, sendo esta, uma das principais responsabilidades de um eventual Conselho formado no âmbito do sistema de governança da organização.
É exatamente isso que temos trabalhado de forma persistente no novo ecossistema de governança corporativa que tenho tido a oportunidade de contribuir e participar ativamente. Primeiro na Certificação de Conselheiros Consultivos, CONCERTIF®, e na Associação Brasileira de Conselheiros Consultivos Certificados, ABC³.
Este artigo foi publicado originalmente no jornal Tribuna da Imprensa Digital